Depois de três edições de sucesso, o Centro Cultural São Paulo (CCSP) apresenta as montagens dos textos vencedores do quarto edital da Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos a partir de 18 de maio, com a estreia de As 3 uiaras de SP City, texto de Ave Terrena Alves, direção de Diego Moschkovich e elenco formado pelos atores Danna Lisboa, Diego Chilio, Maria Emília Faganello, Sophia Castellano e Verônica Valenttino…
O segundo espetáculo da mostra que sobe aos palcos em 15 de junho é Buraquinhos ou O Vento é Inimigo do Picumã (dramaturgia de Jhonny Salaberg e direção de Naruna Costa); e, em 19 de julho, Necropolítica encerra o evento com texto de Marcos Barbosa e direção de Aury Porto.
Em As 3 uiaras de SP City Miella e Cínthia (interpretadas pelas atrizes trans Danna Lisboa e Verônica Valenttino) moram em SP City, onde trabalham em salões de cabeleireira, fazem programa e performam em boates. Elas decidem fazer um show musical, conseguem agendar a primeira apresentação e para viabilizar a infraestrutura tentam se associar a Valéria, militante feminista. Porém a Operação Rondão, comandada pelo delegado Rochetti, agrava a já violenta realidade das travestis/mulheres trans e prostitutas da região – entre a década de 80 e a atualidade – com prisões e agressões.
Para o diretor Diego Moschkovich, o espetáculo é quase um musical, pois há quatro músicos em cena que tocam ao vivo a trilha sonora, além de quatro canções autorais de Ave Terrena Alves em parceria com a equipe musical. “Busquei inspiração na concepção de montagem de atrações de Serguei Eisenstein, um dos mais importantes cineastas soviéticos, e criei uma atmosfera de boate paulistana dos anos 80 com shows de travestis. A cada cena temos um novo número”, explica ele.
Material histórico vira dramaturgia
A dramaturga Ave Terrena Alves conta que a necessidade de resgatar a memória de travestis/mulheres trans que circulavam pelo centro da capital de São Paulo surgiu durante a pesquisa do Laboratório de Técnica Dramática – LABTD, do qual é integrante, sobre o relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), publicado em 2014. O relatório também serviu de base para a peça O Corpo que o Rio Levou (2017), que foi o seu primeiro experimento de investigação do material histórico. “Nessa montagem foram pesquisadas as décadas de 60 e 70, tomando por base a classe média alheia à luta política e o sistema de tortura e terror organizado pelo Exército após o golpe militar. Para a peça atual, entendi ser necessário ampliar o escopo da pesquisa para outros segmentos da sociedade, cuja memória ficou invisibilizada pelo processo incompleto de transição para a democracia”, diz ela. Para 2019 a dramaturga e o diretor preparam junto ao LABTD o texto de Bombas sobre São Paulo, mais um espetáculo sobre o tema, fechando assim uma trilogia.
A pesquisa de As 3 uiaras de SP City tomou como base o livro Ditadura e Homossexualidades, organizado por James N. Green e Renan Quinalha, as 37 edições do jornal O Lampião da Esquina, e, principalmente, os diálogos fundamentais com as militantes feministas trans Neon Cunha e Erika Hilton. “Escolhi então o recorte das Operações Rondão e Tarântula para trabalhar dramaturgicamente o material histórico. Comandada pelo delegado José Wilson Richetti, essas operações ocorreram ao longo da década de 80, sendo um marco trágico na história de violência sofrida pela população LGBT e de prostitutas na cidade de São Paulo, onde viviam pessoas de todas as regiões do país”, explica a dramaturga.
A montagem também dá continuidade a pesquisa formal de Ave Terrena Alves na técnica de dramaturgia muralista, iniciada em 2014, durante sua passagem pelo Núcleo de Dramaturgia SESI–British Council. Com base nos romances muralistas da série Marco Zero, de Oswald de Andrade, o objetivo é propor o trânsito por diferentes grupos sociais e identitários para obter o retrato mais amplo possível de determinado período histórico.
Personagens reais
As 3 uiaras de SP City parte de uma série de eventos ocorridos entre os anos de 1979 e 81, durante as operações de caça a travestis e prostitutas organizadas pelo delegado Wilson Richetti. O levantamento de fatos históricos se baseia em notícias de jornal, artigos escritos por pesquisadores, e, principalmente, no diálogo contínuo com Neon Cunha, designer, artista plástica e militante feminista trans, que viveu a década de 80 na cidade de São Paulo.
“Não se trata, contudo, de uma peça histórica, pois o tempo do texto transita entre passado e presente, entre narrações sobre o passado e cenas situativas no presente”, conta o diretor Diego Moschkovich. Já para Ave Terrena Alves, o objetivo é criar uma temporalidade híbrida que resgate os eventos históricos para verificar quais as circunstâncias que permaneceram e quais se modificaram. “A pulsão rapsódica é, portanto, um princípio formal estruturante do texto, uma vez que as personagens se deslocam entre tempos ambíguos, que criam uma zona de indeterminação temporal entre a década de 80 e a atualidade”, completa ela.
Entre tantas informações durante a pesquisa, a dramaturga encontrou uma passagem interessante sobre a atriz e produtora Ruth Escobar, na época então deputada estadual. “Ruth lançou várias intervenções na delegacia contra as torturas e prisões ilegais e é claro que levei isso para a peça”, adianta Ave Terrena Alves.
Para realçar essa dualidade de figuras públicas e personagens, Diego Moschkovich trabalhou com os atores uma interpretação mais humana, que apresentasse uma relação mais autêntica. Escrita por uma dramaturga trans e com duas atrizes trans em cena, o diretor também leva à cena a vivência dessas mulheres tecendo linhas de ações e relações delicadas com os perigos atuais de corpos que não se encaixam na norma segundo o poder Instituído.
Uma exigência da dramaturga Ave Terrena Alves é que as personagens Miella e Cínthia devem ser interpretadas por atrizes travestis/mulheres trans, pelo menos até o ano de 2047, caso o texto venha a ser remontado. Assim, para a montagem, as atrizes e cantoras Danna Lisboa e Verónica Valenttino foram convidadas pelo LABTD para juntar-se ao núcleo do grupo no processo.
Danna Lisboa é compositora, cantora, dançarina e atriz. Lançou recentemente o EP Trinks no Sesc Belenzinho e os clipes Cidade Neon, Trinks e Quebradeira, com Gloria Groove. O single Cidade Neon se tornou um curta e foi premiado na categoria melhor atuação no Festival Film Works. Já Verónica Valenttino também é atriz, compositora e cantora. Ficou conhecida nacionalmente pelo trabalho de sua banda de punk-rock, Verónica Decide Morrer. No teatro, participa do coletivo cearense As Travestidas, integrando a peça Quem tem Medo de Travesti?, dirigida por Silvério Pereira e integrou o elenco de Bicho com direção de Georgette Fadel.
Ficha Técnica – As 3 uiaras de SP City
Dramaturgia – Ave Terrena Alves
Direção – Diego Moschkovich
Elenco – Danna Lisboa, Diego Chilio, Maria Emília Faganello, Sophia Castellano e Verônica Valenttino
Músicos – Felipe Pagliato, Gabriel Barbosa e Victória dos Santos
Cenografia e Iluminação – Wagner Antonio
Figurino – Diogo Costa
Vídeo – Luciana Ramim
Produção – Bia Fonseca, Iza Marie Miceli e Lucas Cândido
Realização – Centro Cultural São Paulo
As 3 uiaras de SP City
Centro Cultural São Paulo
Espaço Cênico Ademar Guerra
Rua Vergueiro, 1000 –Estação de metrô Vergueiro
Tel.: 3397-4002
Capacidade: 100 lugares
Duração: 90 minutos
Estreia sexta-feira, 18 de maio, às 21h
Temporada: Até 10 de junho
Sexta-feira e sábado, às 21h
Domingo, às 20h
Ingressos:
R$ 20,00
R$ 10,00 (meia-entrada)
Recomendação etária: 14 anos
Bilheteria – de terça a sábado, das 13h às 21h30; e domingos, das 13h às 20h30.
Vendas Online: Ingresso Rápido
Acesso para deficientes físicos
Continuação da mostra
Para Kil Abreu, curador de teatro do Centro Cultural São Paulo, este quarto movimento da Mostra é sem dúvida o que consolida o projeto, que levou ao palco até aqui nove autores e autoras selecionados nas edições anteriores, além de algumas centenas de outros que enviaram seus textos para avaliação. “A edição atual ensaia mais deliberadamente as pontes entre estética e política em um momento em que esta relação volta a ganhar recorrência na cena brasileira. Nas peças de Ave Terrena e Jhonny Salaberg prevalecem as discussões sobre gênero, raça, lugares de classe e uma espécie de microfísica do poder, como dizia Michel Foucault. Já a quase anti-peça de Marcos Barbosa observa a sociabilidade em uma visada mais ampla, discutindo as formas atuais do ativismo agora travadas nas variações da polarização em que vivemos”, explica ele.
O segundo espetáculo da IV Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos será Buraquinhos ou O Vento é Inimigo do Picumã, texto de Jhonny Salaberg e direção de Naruna Costa. A montagem é uma narrativa em primeira pessoa sobre a história de um menino negro que mora na periferia e corre o mundo inteiro para salvar a sua vida. Nascido e criado em Guaianases, zona leste de São Paulo, a personagem narra sua trajetória desde o momento em que vai comprar pão na padaria, o encontro com um policial e sua corrida pelo mundo.
A última montagem a ganhar a cena será Necropolítica, de Marcos Barbosa e direção de Aury Porto. Com Carol Badra, Luis Marmora, Mariano Mattos Martins eTatiana Tomé, o espetáculo é um mosaico sombrio de uma sociedade em crise, mergulhada em dilemas que envolvem o surgimento de uma nova classe: os mortos. Atravessados pela disputa por recursos, por espaços e por representações, agora são eles que pautam os grandes debates em que se constroem, aos trancos e barrancos, entre a ética e a estética, uma possível nova política.
Próximas estreias
Buraquinhos ou O Vento é Inimigo do Picumã
Dramaturgia de Jhonny Salaberg e direção de Naruna Costa
De 15 de junho a 8 de julho
Necropolítica
Dramaturgia de Marcos Barbosa e direção de Aury Porto
De 19 de julho a 5 de agosto
Fotos As 3 uiaras de SP City: Renato Mangolin
Foto Necropolítica: Sosso Parma
Foto Buraquinhos: João Luiz Silva
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