Segundo Sidarta Ribeiro, o abandono progressivo do sono e dos sonhos são fortes indícios do mal estar de nosso tempo…
Quando a maioria dos ocidentais sequer se lembra dos seus sonhos, é possível dizer que esses indivíduos estão desconectados de uma coletividade, enfrentando sérios prejuízos cognitivos e sociais.
Após dois anos de pesquisas com antropólogos, antropólogas, pajés e lideranças indígenas, o coletivo 28 Patas Furiosas compreendeu que, para alguns povos ameríndios, o sonho é incorporado como um fenômeno que incide sobre a realidade das aldeias, podendo ser revertido em ações de cura ou mesmo na transformação da organização social e política daquela comunidade. Partindo desta ideia, o grupo criou o espetáculo Um Jaguar por Noite, que faz sua temporada de estreia na Sala Multiúso do Centro MariAntonia, em parceria com o TUSP, entre os dias 17 de maio e 9 de junho, com sessões às sextas e sábados, às 21h, e, aos domingos, às 18h. Os ingressos são gratuitos.
O coletivo mergulhou nas cosmologias dos povos Xavante, Kamayurá e Guarani para discutir como o ato de compartilhar sonhos é capaz de coletivizar essa experiência. E, ao mesmo tempo, como sonhar é uma forma de transitar entre mundos, percorrer caminhos, extrapolar geografias, deslocar-se e alterar-se.
“Depois de realizar dois espetáculos a partir de literaturas europeias, passamos a olhar para a cultura brasileira em nossas pesquisas. No espetáculo anterior do grupo, ‘Parede’, criamos a peça a partir do autor Qorpo-Santo. Agora, entramos em contato com alguns elementos da cultura ameríndia, mas não com a intenção de falar em nome desses povos e sim com a missão de repensar o nosso cotidiano sob outros pontos de vista”, diz a atriz Sofia Botelho.
Há dez anos em trabalho contínuo, o 28 Patas Furiosas busca uma relação mais horizontal entre a encenação, dramaturgia, atores, atrizes e as materialidades da cena, buscando diminuir a presença humana do protagonismo da ação. Do mesmo modo, os povos ameríndios não consideram o Ser Humano como a figura central da existência. “Sonhar como água, rocha, planta, bicho, etc., para assim – quem sabe? – vislumbrar outros mundos para essa realidade tão desgastada das velhas formas de existir, na crença de que o sonho, assim como o mito ou como um espetáculo teatral, podem atuar sobre o tempo presente”, como consta no projeto do grupo.
Numa instalação cênica formada por painéis de luzes oníricos, confetes e colchões infláveis, ao longo de 90 minutos, o grupo busca proporcionar ao público uma vivência única no teatro: ao preparar o espaço cênico para dormir, o grupo reflete sobre a dificuldade de se ter um sono de qualidade nas cidades. E, para adicionar outras camadas ao texto, o elenco procura se lembrar dos sonhos perdidos nas suas memórias.
A trama se descortina no plano dos sonhos, onde um grupo de pessoas (na peça, “Setegente”), decide alugar uma casa no campo para celebrar algo do qual não se lembra mais. Neste ambiente, são surpreendidos pela noite, quando o encontro festivo ganha contornos oníricos que entortam a realidade: a casa se desloca para um cemitério, cruza com dois rios e leva a todos ao topo de uma montanha rodeada por uma onça.
Ao longo da pesquisa, o grupo entendeu que um dos grandes problemas da sociedade ocidental foi ter abandonado o sono, ao ponto de mal conseguir se lembrar dos sonhos. Essa ideia ganha eco nas palavras do neurocientista Sidarta Ribeiro, outra importante referência para a construção do espetáculo. O pesquisador observa que estamos desconectados de uma coletividade, enfrentando sérios prejuízos cognitivos e sociais.
Desta forma, a proposta de Um Jaguar por Noite é posicionar o sonho como um dos fenômenos centrais da experiência humana, já que o ato de sonhar é capaz de elaborar ideias e construir estratégias de vida e de produção de novos futuros.
A idealização e a realização do espetáculo são do 28 Patas Furiosas, que assina a dramaturgia ao lado de Tadeu Renato. Em cena estão Isabel Wolfenson, Maíra do Nascimento, Pedro Stempniewski, Sofia Botelho e Valéria Rocha. A encenação, cenografia e luz são de Wagner Antônio.
Sobre a encenação
Como os mundos da vigília e o onírico se misturam na dramaturgia, todo o espetáculo é construído a partir da sobreposição de imagens e palavras. Ou seja, na prática, as cenas se ligam menos por uma relação de causalidade e mais por conexões simbólicas, como simulando uma linguagem do sonho.
E Wagner Antônio foi o responsável por construir uma ambiência que funciona como uma instalação composta por colchões infláveis, três painéis de luz, confetes, vasos, dentre outros itens.
“A peça se estabelece como um ritual de entrada no mundo dos sonhos, mas também como um caminho de volta para a realidade. Quando um sonho é compartilhado, ele se torna política, espiritualidade, filosofia – o que estamos chamando de tecnologia dos sonhos”, comenta o encenador.
Nesse contexto, os espectadores precisam estar completamente imersos na narrativa até que, lentamente, vão perceber que foram capturados pelos sonhos. “O público se acomoda em círculo, em uma disposição que está entre o teatro e um quarto ou um acampamento, ou quase como se todos estivessem ao redor de uma fogueira”, explica Wagner.
O ponto de partida para Um Jaguar por Noite foi uma performance-instalação do grupo chamada Parabólica Dos Sonhos, cuja proposta era a criação de um ambiente pensado para o público partilhar e gravar seus sonhos. O som, a luz e as projeções, junto a elementos como vasos com água, temperos, ovos, carvão, fósforos, papéis e colchões infláveis, contribuíram para a construção de um espaço meditativo propício para essa troca entre performers e participantes voluntários.
O espetáculo é parte do projeto “Dos sonhos à vigília: pesquisa, espaço e território em 10 anos de trajetória do 28 Patas Furiosas”, contemplado pela 41ª Lei de Fomento ao Teatro da cidade de São Paulo.
Sinopse
Em “Um Jaguar por Noite”, as atrizes, os atores e a equipe técnica do 28 Patas Furiosas preparam o espaço cênico para dormir, enquanto elaboram reflexões sobre a dificuldade do sono nas cidades e se arriscam ao tentar lembrar de sonhos perdidos em suas memórias.
No plano onírico, um grupo de pessoas decide alugar uma casa no campo para celebrar algo do qual não se lembram mais. Nesta casa, as pessoas são surpreendidas pela noite, e veem o encontro festivo ganhar contornos oníricos que entortam a realidade: a casa se desloca para um cemitério, cruza com dois rios e leva as pessoas para o topo de uma montanha rodeada por uma onça.
Ficha Técnica
Idealização e realização – 28 Patas Furiosas
Dramaturgia_28 Patas Furiosas e Tadeu Renato
Encenação, cenário e luz_Wagner Antônio
Texto_Tadeu Renato
Atuação_Isabel Wolfenson, Maíra do Nascimento, Pedro Stempniewski, Sofia Botelho e Valéria Rocha
Música_Júlia Ávila
Figurino_Valentina Soares
Colaboração no trabalho vocal_Natalia Nery
Arte gráfica_Julia Valiengo
Direção técnica e assistência de direção_Dimitri Luppi
Equipe técnica e assistência de iluminação/ cenografia_Camila Refinetti, Felipe Fly, Leo Sousa, Letícia Nanni e Lucas JP Santos
Registro em foto_Helena Wolfenson
Registro em vídeo_Marcos Yoshi
Assessoria de imprensa Canal Aberto
Mídias sociais_Tadeu Ramos
Produção – Lud Picosque – Corpo Rastreado
Um Jaguar por Noite
TUSP | Centro Mariantonia
Sala Multiúso
Rua Maria Antônia, 258/294, Vila Buarque, São Paulo
De 17 de maio a 9 de junho
Sextas e sábados, às 21h
Domingos, às 18h
Ingresso: grátis | Retirada de ingresso na bilheteria com 1h de antecedência
Classificação etária: Livre
Duração: 90 minutos
Sobre o 28 Patas Furiosas
28 Patas Furiosas é um coletivo originado em 2013 na cidade de São Paulo que tem como bases a experimentação da linguagem teatral e a criação de espetáculos com dramaturgias autorais. Desde 2013, o grupo gerencia sua sede, o Espaço 28 (atualmente localizado no Bom Retiro, SP) onde, além de conceber e apresentar seus espetáculos, realiza diversas atividades como o m0no_festival – festival de solos em diferentes linguagens, oficinas, concertos, residências artísticas, performances, mesas de debate com convidadas e convidados, além de trocas com diferentes coletivos e com o público.
O 28 Patas Furiosas se encontra em pesquisa continuada desde a sua formação, tendo realizado os espetáculos lenz, um outro (2014), A Macieira (2016), Parede (2019), o experimento audiovisual Parede de Dentro (2021), e a performance Parabólica dos Sonhos (2022).
Foto: Helena Wolfenson
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