O premiado “Mantenha Fora do Alcance do Bebê”, de Silvia Gomez, volta a São Paulo para nova temporada, agora no Teatro Porto Seguro. Com Débora Falabella, Anapaula Csernik, Jorge Emil e Diego Dac, sob direção de Eric Lenate, o espetáculo mostra uma entrevista para adoção de um bebê. Seria uma história comum, não fosse o surrealismo e a falta de controle que conduzem toda a trama.
Falabella está determinada a levar um bebê para casa e tenta, a todo custo, convencer a Assistente Social (Csernik) de que está preparada para a adoção. Questionada sobre sua vida, hábitos e expectativas quanto à maternidade, ela lista dezenas de qualidades e afazeres que, do seu ponto de vista, a tornam perfeitamente apta. Fria, rígida e de movimentos milimetricamente planejados, não entende porque a assistente social não pode apenas preencher a ficha e entregar-lhe o bebê.
A Assistente, a despeito das qualidades apresentadas, insurge-se contra a falta de emoções e humanidade da entrevistada. Quer sempre mais da aspirante a mãe. Mas, ao contrário do que poderíamos pensar, ela também não é um exemplo de amor e empatia. Igualmente fria e com um figurino cinzento e sem vida que reflete sua própria vida, a sensação é de que ela busca na personagem de Falabella as emoções que ela mesma não tem. A diferença é que a adotante não vê porque tê-las.
A tensão do diálogo cresce à medida que, entre a ansiedade – que beira a loucura, da mulher em fazer logo a adoção e a relutância da Assistente Social em aprová-la, ambas perdem a paciência e partem para um embate psicológico que acabará por desnudá-las.
No auge do descontrole da situação, Rubens (Jorge Emil), marido da entrevistada, é chamado. Com a missão de restabelecer os ânimos, ele surge com uma tesoura em mãos. Sua chegada, no entanto, desencadeia os finais – e surpreendentes – momentos finais, que dão mais uma camada ao espetáculo.
O plano de fundo de tudo isso é uma cidade tomada por lobos. Há, inclusive, um deles trabalhando no escritório. Com roupas sociais e cabeça de lobo, o ator Diego Dac não tem falas, mas sua presença é de muita importância. Duvidosa, robótica e híbrida, sua sombra rodeia e amedronta as personagens, ao passo que também pode ser compreendida como uma representação da sociedade.
Em termos de representação, o próprio título da peça tem grande significado. Em certo momento, as personagens citam a advertência, dos produtos de limpeza, de que devem ser mantidos fora do alcance de crianças. Só que, neste cenário, os produtos são a menor preocupação.
A narrativa é muito original e prende a atenção em todos os momentos. Cada mudança de cenário é coreografada e há uma sensação de enclausuramento que faz jus à limitação das personagens. O clima surreal, sobretudo pela presença de lobos e mentalidade questionável da adotante, permanece até o final, mas aos poucos deixa de se impor à identificação da plateia e assume o papel contrário, de aproximação.
É um espetáculo perspicaz e muito instigante. Entre lobos, bebês, uma desesperada aspirante a mãe e uma funcionária pública (des)motivada, o resultado é uma crítica coerente, ampla e muito inteligente a como nos relacionamos e vivemos, sem deixar de lado a ambiguidade de tudo isso. O desfecho não poderia ser melhor.
Coincidência ou não, a idealização da peça é da Sociedade Líquida.
“Mantenha fora do alcance do bebê” fica em cartaz no Teatro Porto Seguro até 15 de setembro.
Foto: Leekyung Kim
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