O contexto on-line trouxe ganho de camadas cênicas: na quarentena, o público aprofundou sua relação com o formato digital, expandiu as horas de uso de redes sociais e expôs detalhes de sua privacidade…
O trânsito entre arte e vida, o tempo suspenso no período de isolamento social, a crise de sentidos e uma discussão do contexto sociopolítico do Brasil a partir da própria biografia são alguns traços de Peça, espetáculo escrito e idealizado por Marat Descartes, com direção de Janaina Leite, assistência de Gisele Calazans e colaboração de Nuno Ramos.
Gestada em ensaios presenciais, mas amadurecida e nascida já num contexto on-line, Peça terá sua estreia e exibição pelo YouTube da produtora Corpo Rastreado a partir do dia 20 de junho, sábado, 21h. O ator, nas sessões teatrais virtuais, fará uma transmissão ao vivo a partir de sua casa mesclada com vídeos pré-gravados. Para assistir ao espetáculo, basta acessar este link. Peça foi realizada com o apoio da 9ª Edição do Prêmio Zé Renato de Teatro para a cidade de São Paulo da Secretaria Municipal de Cultura.
Processo de Criação da Peça
Em 2017, Marat Descartes escreveu um monólogo a partir das propostas estéticas do pintor e escultor Marcel Duchamp (1887 – 1968) e mais especificamente sobre o ready-made, modo de produção idealizado pelo artista que consiste em deslocar objetos comuns do cotidiano ao contexto de galerias ou espaços culturais para que esses fossem considerados obras de arte. Marat apresentou essa versão ao artista plástico Nuno Ramos, que propôs um outro caminho que ainda partisse da lógica do ready-made, mas que não precisasse de uma citação direta a Duchamp.
A escolha fez com que Descartes mergulhasse em sua própria biografia para colocá-la em um contato mais direto com o Brasil atual e com seus temas mais urgentes. Nesta etapa, o artista convidou a atriz Janaina Leite para a direção. A pesquisa artística de Janaina passa pelo teatro biográfico, documental e pela autoficção, elementos que tem trabalhado em obras recentes, como Stabat Mater e o díptico Feminino Abjeto.
Devido ao fechamento dos teatros em março de 2020 em decorrência da pandemia do novo coronavírus, Peça – que já tinha um período de ensaios presenciais de aproximadamente dois meses – teve que mudar sua percepção da relação palco/plateia e passou a construir as cenas na lógica digital. Isso exigiu de Marat a reescrita de parte do texto, mas potencializou os tópicos que começavam a ser levantados no início do projeto, como a ascensão do fascismo no Brasil, o genocídio da população negra, o aumento do feminicídio e outros problemas sociais graves que cresceram durante o período de isolamento social.
“A peça foi reformulada e a todo tempo tive a preocupação de adequar o conteúdo a essa nova linguagem em vez de pensar numa adaptação do que já existia. A nova proposta está muito validada por ser o registro da necessidade de um artista em dialogar com seu tempo, com o confinamento e com a barbárie que o país está vivendo”, diz Marat Descartes.
O título – Peça – traz uma síntese da proposta do ready-made idealizada por Duchamp, afinal o espetáculo se trata de uma peça de teatro; mas também corresponde ao imperativo do verbo pedir. “É um pedido por uma nova possibilidade de estarmos vivos”, diz Marat.
Além dos seus trajetos pela casa, a peça também conta com alguns vídeos que contrapõem a experiência do confinamento a diferentes noções de nascimento e reinvenção. Janaina conta que o processo dos ensaios on-line propunha uma relação conjunta de montagem e edições. Com o auxílio de Gisele Calazans, bailarina e esposa de Descartes, era possível que o trio pensasse na dinâmica dos deslocamentos, no enquadramento de cada cena e nos cenários que serão expostos ao público. “Fomos entendendo juntos o que o material pedia. Eu propunha dispositivos de criação, fazia provocações a partir dos ambientes de ensaio e montávamos juntos o material a partir do jogo dramatúrgico e audiovisual”, conta Janaina sobre o processo de criação da peça.
O Museu Biográfico como Processo
Um dos dispositivos iniciais incitados por Janaina foi para que Marat criasse um “museu pessoal”. A ideia era possibilitar ao ator expor questões íntimas de uma maneira mais aprofundada e que gerasse comunicação direta com o público.
Com apoio de Nuno Ramos e Janaina, o artista entendeu que dispor as partes do seu corpo como itens de um museu facilitaria o delicado processo de falar sobre seus mortos – pai, mãe, irmãos e outros ancestrais – além do revolucionário Jean Paul-Marat, personagem central da Revolução Francesa e o filósofo francês René Descartes, as duas figuras históricas que compõem seu nome, que também estão presentes na Peça e que, segundo Marat, “revelam a própria contradição em que me encontro atualmente: a necessidade de parar tudo e apenas refletir sobre o mundo, e o desejo de agir no sentido de uma revolução que nos traga um novo mundo, já que este em que estamos definitivamente ruiu em suas bases civilizatórias”.
“A ideia de museu era uma imersão, mas a leitura do Nuno Ramos sobre ele fez com que as partes do corpo do Marat ajudassem a contar essa história”, diz Janaina. A artista complementa que quando eles precisaram transferir a Peça para o contexto on-line, houve ganho em muitas camadas, pois o formato já incita uma série de elementos que dialogam diretamente com um público que está em quarentena, como o uso das redes sociais, a exposição na internet, a privacidade e a sensação de um tempo suspenso, diferente do que se conhecia antes da quarentena.
“Trazer meus mortos para a cena também estabelece comunicação, já que nesse cenário terrível que estamos vivendo, não é nem possível que as pessoas possam ritualizar suas perdas. Além disso, as notícias diárias têm nos levado a refletir sobre a necessidade de estabelecer outros paradigmas, outro olhar para o que queremos do futuro”, diz o ator.
Mesmo que ambientada em um momento de tanta fragilidade, o artista destaca que a Peça também aponta para as possibilidades de nascimento, reafirmações de vida e esperança. “No processo de investigação desse museu, também havia momentos sublimes que são evocados na peça, como meu casamento e o nascimento das minhas filhas”. Muitos desses momentos estão presentes a partir dos vídeos documentais que são executados durante a peça e que contribuem para a construção da narrativa.
Ficha Técnica
Concepção, texto e atuação: Marat Descartes
Direção: Janaina Leite
Colaboração: Nuno Ramos
Assistência de direção: Gisele Calazans
Figurino: Fabio Namatame
Cenário e luz: Marisa Bentivegna
Vídeos: Gabi Brites
Trilha sonora original: Natalia Mallo
Produção: Corpo Rastreado – Natasha Bueno
Assessoria de imprensa: Canal Aberto – Márcia Marques
Assistentes de assessoria de imprensa: Daniele Valério e Diogo Locci
Comunicação digital: Thompson Loiola/ 99 Comunicação
Programação visual: Sato do Brasil
Realização: Fermina Daza Produções artísticas e Corpo Rastreado
Peça
Onde: Youtube/corporastreado
Temporada: De 20 de junho a 31 de julho de 2020
Sextas, sábados e domingos, às 21h
Ingressos: Grátis
Duração: 50 minutos
Classificação: 16 anos
Redes Sociais do Espetáculo:
Instagram @apecaonline
facebook.com/apecaonline
Foto: Gabi Brites
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