Um escritor que conduz o pessimismo ao cotidiano com leveza, através de humor como remissão do drama humano

Após algumas tentativas, finalmente conseguimos marcar um encontro com escritor e dramaturgo José Augusto Torres Fontes, autor de “Caso Clínico”, “O Senhor dos Cachorros”, e do livro Marcou Dançou…

 

 

 

José Augusto você começou, adolescente, a escrever poemas. Um deles se não me engano foi transcrito por Clarice Lispector em uma crônica para o Jornal do Brasil. Como foi para você ter um verso citado por uma artista como Clarice Lispector?

Fiquei surpreso e muito feliz, me senti reconhecido e valorizado por ter sido notado e apreciado por uma escritora do nível de Clarice, um dos grandes nomes de nossa literatura. A crônica de Clarice (De Como Evitar Um Homem Nu) referia-se ao filme de Nelson Pereira dos Santos, Como Era Gostoso o Meu Francês. À época a Censura Federal queria proibir o nudismo dos indígenas rsrs. O verso, dizia: “Saí nu na rua e não me entenderam / Vou vestir terno e gravata.” Clarice cita o poema como tendo sido enviado por um poeta paulistano, e finaliza a crônica assim: “Por via das dúvidas, melhor colocar terno e gravata nos tupinambás.”

 

 

 

Como foi ter sua peça Caso Clinico encenada no em uma versão televisiva, que alias foi retransmitida recentemente em homenagem ao Sergio Mamberti?

Foi muito gratificante, pelo fato de a televisão atingir um grande número de pessoas, você ter sua obra apresentada em larga escala, e poder contar com um diretor de renome nacional e um elenco com nomes conhecidos e reconhecidos pelo grande público entre os mais notáveis do país. E esse é o desejo maior de um dramaturgo em início de carreira. E muito contente por ver que, afora cenas em externas criadas por Antunes, o diretor foi totalmente fiel ao texto, embora com pouco destaque ao humor, brilhantemente citado pelo influente crítico teatral Alberto Guzik dos jornais Última Hora e Jornal da Tarde, conforme o vídeo. Não é preciso dizer que as atuações de Sérgio Mamberti, Natália Thimberg e Cazarré foram sublimes.

 

Depois de “Caso Clínico” na TV Cultura, a peça foi montada pela companhia Teatro Contemporâneo no Teatro São Pedro, sob direção de Afonso Gentil, com Bárbara Fazio, mulher do Walter George Durst, como protagonista.

A montagem teatral do Gentil proporcionou uma entrevista na TV Cultura, antes mesmo de a peça ser levada ao ar por ela, com minha presença e mediada pelo primeiro crítico teatral especializado no Brasil e considerado o mais importante daquele tempo, Décio de Almeida Prado* do jornal O Estado de S. Paulo – até 1967

Alguns anos depois a peça foi produzida e estrelada por Marie de Vielmond, irmã de Renée, no Rio de Janeiro. Infelizmente o diretor importado, cujo nome tive a bênção de esquecer, não compreendeu o texto, tirando todo o humor da peça. Ficou uma coisa muito pesada, a peça se arrastava em cena.

* https://ims.com.br/por-dentro-acervos/decio-de-almeida-prado-100-anos/

 

 

Como dramaturgo você escreveu outras peças, algumas ainda inéditas. Entre as produzidas profissionalmente quais você citaria?

O “O Último Ano de Tagistre Nim”, foi produzida por Paschoal Carlos Magno em seu Teatro do Estudante. Paschoal foi um dos homens mais importantes do teatro brasileiro. Só o fato de ele vir a São Paulo, acompanhado de Willy Keller, especialmente para conversar comigo, me deixou muito honrado, me senti realizado. Foi como se nos conhecêssemos há muito tempo e o papo fluiu horas. Ele já tinha tudo pronto na cabeça, elenco, encenação, cenário, a peça estava pronta.

É o autor, diretor de teatro e tradutor alemão de literatura brasileira Willy Keller?

Sim, com Willy Keller foi o Nirvana. Ter a versão radiofônica de um texto meu em alemão em uma das maiores e mais respeitadas rádios do mundo foi, sem dúvida, uma enorme emoção, e ao mesmo tempo me indicava que o texto escrito por um iniciante tinha valor e poderia ser reconhecida internacionalmente , especialmente por ser realizada em um país onde arte é de enorme importância.

 

Você também teve uma peça com o Antônio Abujamra como diretor geral?

Foi “O Senhor dos Cachorros”, originalmente foi intitulada por mim de “O Despótico Senhor Iosef Erstn e sua Submissa Esposa Volpa, com Algumas Intromissões de Polts, o Fiel”.

Durante a produção no Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, resolveu-se pela mudança no nome. Essa é minha única peça de temática político militante que escrevi, no auge da ditadura, com Geisel no poder. Os atores Antônio Fagundes e Clarisse Abujamra representavam um casal, e Ednei Giovenazzi seu secretário. Os cachorros, com os quais Iosef apavorava sua mulher representavam o exército. Mas ficava bem claro que o marido representava o ditador da época, a mulher seria o povo, e o secretário a classe política.

Fui eu mesmo buscar o censor no prédio da Polícia Federal, pagando o táxi. Ele viu e não disse nada, aprovou sem cortes a tirania imposta à mulher-povo pelo marido-ditador. E assim foi montada, com a criativa cenografia de José Carlos Serroni, que também assinou o figurino, e com direção musical de Júlio Medaglia.

Trabalhar com Abujamra como diretor geral foi um grande aprendizado, um gênio do teatro, exigente e carinhoso. A mais digna e mais inteligente pessoa que conheci no meio artístico.
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Reprodução do Livro Clóvis Garcia – A crítica como ofício – Coleção Aplauso
Organizador: Carmelinda Guimaraes

Crítica de Clovis Garcia O Estado de S. Paulo – 11 de julho de 1980 – Realidade em dos tons: a análise séria e a sátira.

O Projeto Cacilda Becker, uma idéia de nossa saudosa grande atriz, estreou sua terceira montagem, realizando um dos seus itens que é o teatro de repertório. Os outros itens, graças à atuação de Antônio Abujamra e seus companheiros de cooperativa, tais como leituras dramáticas, seminários, exposições, continuam em execução, revitalizando, finalmente, o TBC e merecendo indicação do prêmio Mambembe.

O Senhor dos Cachorros, de um autor até agora desconhecido, José Augusto Fontes, é uma fábula na linha da caricatura. Só que a situação linguagem, simbólicas em toda fábula, são diretamente ligadas à nossa realidade e, infelizmente, o caricato não chega a exagerar. Os trechos, por exemplo, referentes à imprensa, o diálogo, sobre o reconhecimento dos direitos dos trabalhadores, os planos que adiam as soluções, são do nosso dia-a-dia.

Há, no entrecho, uma fala do “Senhor”, afirmando que “a Arte não tem nada a ver com a Educação, é um luxo”. Pois temos nos jornais que a Caixa Econômica Federal vai cortar os créditos educativos para alunos de cursos de Arte e Educação Artística (ignorando que estes formam professores de disciplina obrigatória do currículo de 1ª e 2ª graus), para melhor emprego dos dinheiros públicos, em profissões mais afins com a realidade brasileira (sic). Isto é dito e nada acontece, o funcionário não é demitido e inscrito obrigatoriamente num curso de alfabetização de adultos. O que nos faz rir, na peça, pela sua tolice, é uma trágica e bem observada realidade nacional.

Somente esta expressão superficial cômica, mas profundamente dramática, do texto, já recomendaria o espetáculo. Mas, além disso, o senso de humor, a estrutura das cenas, bem aproveitadas pelo diretor Hugo Barreto, num cenário que utiliza milagrosamente o pequeno espaço do palco, devido a José Carlos Serroni, premiado várias vezes no teatro infantil, os figurinos, ambos realistas e simbólicos ao mesmo tempo, tornam a encenação de grande interesse e importância. A interpretação de Antonio Fagundes, uma de suas mais expressivas nos últimos anos, de Clarisse Abujamra e de Ednei Giovenazzi, nos três tipos do senhor, do trabalhador explorado e o subserviente auxiliar politiqueiro, completam a montagem, tornando-a um dos melhores espetáculos da atual temporada.
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O Senhor dos Cachorros foi montada posteriormente no Rio de Janeiro pela companhia Teatral Ágora, na sala Vianinhba, em temporada de três meses. Foi realizada com muito dinamismo e um elenco bastante afiado. O diretor fez uma leitura perfeita do texto, da crítica política que ela contém.

O genial Abujamra fez um rodízio entre diversas peças. “O Senhor dos Cachorros” teve lotação esgotada em todas as sessões de seu período (26/06/1980 a 26/10/1980 – TBC) e, quando substituída, viajou para apresentações em Brasília. Lá as pessoas do poder estavam mais atentas, o que gerou represálias.

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Reprodução do livro Ednei Giovenazzi – Dono da Sua Emoção da jornalista Tania Carvalho – Coleção Aplauso…

Novamente Abujamra surgiu na minha vida no projeto Cacilda Becker, totalmente idealizado por ele. Sua ideia era genial, não queria trabalhar na formação de atores e por isso pegou três com experiência: eu, Fagundes e Clarice Abujamra. Ele queria mesmo era formar diretores, cenógrafos e técnicos. Fiz duas peças dentro desse projeto, a primeira foi Arte Final, de Carlos Queiroz Telles e a segunda, O Senhor dos Cachorros. Esta era uma peça eminentemente política, que falava sobre o abuso do poder. Fagundes era Ernest, o poder (uma referência mais do que direta a Geisel); Clarice era Volpa, o povo; e eu fazia Polts, a política. Quando fomos fazer a peça em Brasília, nos apresentamos na quarta-feira, na quinta, na sexta o teatro pegou fogo. Incendiaram o teatro, para ser mais preciso. Foram descobertos pelos bombeiros sete pontos de início de fogo, foi provocado mesmo. Os cenários e objetos de cena foram queimados. Eu usava em cena um saco de veludo vermelho, que ficou totalmente queimado. Sabe quem costurou o novo saco de veludo? Dulcina de Moraes. Que coisa linda, a pessoa quando é grande sempre fica maior ainda quando necessário. Ela passou o dia inteiro nos ajudando a refazer tudo e trazendo leite para a gente tomar.

Fagundes ficou fulo e teve alguém para dizer: mas também, vocês vieram fazer a peça na boca do lobo? Eu admiro muito a sua determinação: não vamos parar o espetáculo. E não paramos, refizemos o necessário, colocamos ventiladores para tirar a fumaça e não deixamos de fazer uma sessão. A gente se sentiu meio herói, por estar resistindo à ditadura.
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Depois de a montagem teatral ser encerrada, a TV Cultura a apresentou, tendo gravado a encenação diretamente no palco do TBC.

 

E Perfume de Camélia?

ah! ah! Essa também teve o título alterado pela produção. Para esse texto eu tinha colocado o nome de “Do Jardim, da Camélia e do Maldito Pirilampo”, que teve uma leitura no TBC juntamente com “Boa Noite para Sempre” (inédita).

Depois da leitura do texto, a peça recebeu uma superprodução, patrocinada pelo jogador de futebol Sócrates, da seleção brasileira. Chegamos a ter em cena um grande avião de néon, que surgia depois de o cenário de um apartamento high tech dar, sobre si, uma volta de 180 graus e se transformar em uma pista de aeroporto.

No elenco estavam Maria Luiza Castelli, Raymundo de Souza, Ivan Lima e outros.

Houve uma infeliz troca de diretores às vésperas da estreia, o que chegou a prejudicar o lançamento. Sócrates, um verdadeiro cavalheiro, não demonstrou preocupação, e perguntou-me o que eu tinha achado da modificação de última hora. Fui sincero e me disse insatisfeito. Enfim tudo foi medianamente reajustado, e a montagem ficou alguns meses em cartaz no Teatro Ruth Escobar.

Acredito que essa peça mereceria uma nova produção. É a menina de meus olhos.

 

E Selvagem Casamento Perfeito, como foi?

Dois anos depois foi a vez de “Selvagem Casamento Perfeito” representada no Teatro de Arena Eugênio Kusnet. Ela teve no elenco Paulo Pompeia, recentemente falecido, Márcio Francisco e Helena Gouveia. O texto tratava de um casal que se digladiava constantemente, com a suspeita de que ela tivesse um amante, que surge em cena. A mãe dele, que era representada ao mesmo tempo por dois atores, ambos em cena, ajudava a aumentar a tensão. Eu mesmo dirigi desta vez e coproduzi juntamente com o Paulo. Tivemos pouca divulgação e ainda assim a peça se manteve quatro meses em cartaz, sem grandes lotações mas com apoio da crítica. Particularmente gostei bastante do resultado.

 

 

E a TV Globo?

Fui chamado por eles para escrever vários episódios de Caso Verdade, uma série baseada em fatos reais, uma história por semana. Foi interessante escrever para TV, ter uma outra visão de como escrever um texto. Gostei muito da experiência, e acredito que eles também, por que me pediram uma sinopse para uma novela. Escrevi uma em que um senador se envolvia em tráfico de drogas, com explosão de iate, morte por metralhadoras, uma crítica ao poder político. A emissora respondeu que tinha gostado mas que a censura jamais permitiria que fosse ao ar. Pediram para que escrevesse algo mais leve , coisa que não sei fazer.

Logo me chamaram para participar da então existente Casa de Cultura Laura Alvim, o que infelizmente não pude aceitar pois problemas pessoais me prendiam a São Paulo. Logo Caso Verdade foi substituída por Malhação, e perdemos contato.

 

 

Seu livro, “Marcou, Dançou”?

Aaaaah, esse também mudaram o nome. “Marcou, Dançou” não foi uma escolha minha. Mas nesse caso mantiveram o meu “Manual de Sobrevivência na Cela” como subtítulo na capa.

Marcou, Dançou é sobre minha estada na Casa de Detenção, quando fui preso por porte de drogas, uma pequena porção de maconha. Fiquei por lá onze meses, e mesclo dados autobiográficos com uma boa dose de ficção e de fatos que me foram relatados pelos internos.

Resolvi escrever por que eu tinha de colocar para fora todos os horrores vividos lá dentro. Tive sorte de ficar no pavilhão 2, por ser o pavilhão do trabalho, e nele se podia ficar fora da cela das 6 às 18h. Nos outros eram duas horas de sol de manhã e três à tarde. É terrível a sensação de não poder enxergar a rua, de dormir em uma cela de 12 metros quadrados, com seis beliches e gente dormindo no chão, sempre a um passo da Violência, quer dos internos quer dos funcionários carcereiros.

Tento também mostrar fatos curiosos que aconteciam naquela mansão do terror. Não posso me queixar muito, comigo nunca aconteceu nada grave, nem sofri castigos. Fui muito protegido por um dos internos, e encontrei gente gostosa de se conversar e conviver. Os outros pavilhões eram mais perigosos. Visitei-os todos graças a esse detento amigo, que era diretor de esportes, futebol no caso. Aí eu podia entrar em qualquer lugar. Mas, com certeza, não é uma experiência que gostaria de repetir.

Deixei o original “Manual de Sobrevivência na Cela” na Brasiliense,  e dois meses depois voltei à editora, fui recebido pelo próprio Caio Graco Prado. Ele comentou que nunca tinha conhecido um escritor como eu. Pensei com meus botões, lá vem elogio! E ele continuou: “Você é o único que deixou um original, sem endereço, sem telefone, ficou incomunicável. Eu já tinha decidido publicar o livro e não tinha como entrar em contato.”

Não era bem o que esperava ouvir mas achei muita graça. Hehehe Isso é realmente a minha cara!

O livro foi publicado por Caio Graco Prado para sua editora, a Brasiliense com tiragem de 3000 exemplares, esgotados em menos de dez meses.

 

 

E agora, quais são seus planos e projetos futuros?

No momento finalizo outro livro com o nome de Luz Azul Para Morcegos.
E quanto ao teatro, gostaria de apresentar alguns textos ao Grupo Tapa, que tem um excelente repertório. E acho que seria interessante montar O Último Ano de Tagistre Nin com um pessoal novo, talvez da favela Heliópolis, onde tive forte contato não artístico, quem sabe por intermédio da CUFA. Eu funcionaria apenas como professor e diretor. Pensei nessa peça por ela não exigir nada custoso e precisar de vários atores, e poderíamos usar o pessoal de lá também para luz, som, tudo o que a montagem abrangesse, e realizar um projeto social como o do pianista e maestro João Carlos Martins.

 

Fotos: Arquivo pessoal de José Augusto Torres Fontes
Foto de cena da peça O Senhoir dos Cachorros: reprodução Reprodução do livro Ednei Giovenazzi – Dono da Sua Emoção da jornalista Tania Carvalho – Coleção Aplauso -Imprensa Oficial

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