Depois da curta temporada no Teatro Paulo Eiró, peça estreia no Teatro Arthur Azevedo, na Mooca -Texto que marcou a história da dramaturgia brasileira nos anos 1970, “Missa Leiga”, de Chico de Assis, ganha montagem de Marcio Boaro, com elenco de 19 atores…
“uma oração pelo destino do mundo e do homem”
Chico de Assis
Com direção de Adhemar Guerra e produção de Ruth Escobar, a estreia de “Missa Leiga” em 1972, foi realizada em São Paulo em uma antiga fábrica abandonada. A montagem havia sido concebida para ser na Igreja da Consolação, porém, às vésperas de ser encenada recebeu uma negativa – os católicos não permitiram. A peça, com música de Cláudio Petraglia, cenários e figurinos de Joel de Carvalho e um elenco de 30 atores, entre os quais estava Armando Bógus e Buzza Ferraz e, posteriormente, no Rio, Sérgio Britto.
Considerada, por muitos, obra prima do autor, Missa Leiga driblou a censura ao se utilizar da estrutura de uma missa católica para falar sobre o que acontecia no país em pleno regime militar, bem como materializar o entrecruzamento das diferentes crises que eclodiam no mundo no início da década de 1970, que economicamente rumavam ao neoliberalismo. O texto empregava os choques do “tempo do templo com o tempo do mundo” de maneira a criar tensões úteis para se pensar o Brasil.
É um complexo desabafo do homem para Deus. Antioração de nossa destruição e Chico de Assis esclarece que é uma “peça sobre o Tempo do Mundo. Tem a estrutura da missa católica, laicizada. Trata da responsabilidade humana diante da vida”.
Chico de Assis ao identificar claramente os males do novo modelo de acumulação capitalista dá a Missa Leiga uma força duradoura. A frase em epígrafe parte de uma fala do Corifeu, oferece uma chave de reflexão sobre a peça e o mundo neoliberal: “Só uma consciência em cacos entende um mundo despedaçado”.
“Chico soube criar obras que uniam uma profunda reflexão sobre o país a formas artísticas genuinamente brasileiras. Essa combinação é a grande força de Missa Leiga”, diz Boaro, que já montou As Aventuras e Desventuras de Maria Malazartes durante a Construção da Grande Pirâmide, também de autoria de Assis.
Chico de Assis acabou se tornando um interlocutor fundamental ao longo dos anos da Cia. Ocamorana em conversas, reuniões, palestras, aulas que fizeram com que o coletivo apreendesse de forma privilegiada seu pensamento criador.
A Cia. Ocamorana trabalhou desde o início em Missa Leiga com a perspectiva do teatro épico, e concebeu uma montagem profundamente fiel ao texto de Chico sem deixar de abrir espaços de criação na obra, de forma a ressaltar as tensões de sua transposição para o tempo presente. O objeto de estudo e pesquisa foram os cacos citados na epígrafe acima.
“Hoje temos nossas graves mazelas; pandemia, guerras e fascismo; a força conservadora sendo imposta e nossa montagem deve resgatar um pouco do sonho hippie presente naquele momento, e ir além, dando sentido ao novo em uma sociedade mais plural, mais “feminina”, revela Boaro.
Eu e Chico nos conhecemos durante uma temporada do espetáculo A Máquina de Somar, na Funarte, em 1998, com a Companhia Ocamorana de Teatro. Imediatamente ele nos convidou para participar do SEMDA (Seminário de Dramaturgia do Arena), do qual era fundador e coordenador, e a afinidade nos fez naturalmente começar a trabalhar juntos. Era um homem de teatro, egresso do Teatro Arena, fundador do Centro Popular de Cultura e autor de grandes sucessos, com uma cultura vasta e com uma grande consciência política e preocupação social.
Durante esses anos, pessoas que conhecíamos por pesquisas nos foram apresentadas por Chico, como seus amigos Zé Renato, Gianfrancesco Guarnieri e Fernando Peixoto. Foram anos de convivência e aprendizado contínuo; Chico se apresentava mais como companheiro do que como mestre, sem arrogância ou relação hierárquica. Neste período pensamos em montar uma peça de Brecht, mas Chico, com grande cuidado, fez um gesto de generosidade e nos ofereceu As Aventuras e Desventuras de Maria Malazartes durante a Construção da Grande Pirâmide, texto que ele escreveu para descrever as implicações políticas e sociais da construção de Brasília e que foi censurado pela ditadura, pouco antes da estreia. Apesar de a peça ter sido escrita nesse contexto, permanecia totalmente atual há 16 anos (como ainda é, mais de 50 anos após ter sido escrita). O próprio Chico de Assis nos dirigiu, durante nossa estada no teatro de Arena. Na mesma época, dissemos que gostaríamos de montar uma peça infantil e ele escreveu para nós Quebra Vento e Dorminhoco – O triunfo da amizade. Com o passar dos anos, tomamos nosso caminho, mas sempre permanecemos próximos dele.
Apesar dessa proximidade e dos anos de grande convivência, podemos nos distanciar e ver o grande dramaturgo que é Chico de Assis. Ele, em suas mais de 30 obras, passeia pela dramaturgia, experimenta diversos conceitos e o faz sempre com sucesso. É um dos maiores dramaturgos brasileiros, além de ter criado um método didático de análise e criação dramatúrgica único. Esse grande Homem de Teatro ainda têm suas palavras frescas e seus discípulos abundantes.
Evoé, Chico!
Este trabalho é uma oração pelo destino do mundo e do homem. Cada parte deste texto segue as partes tradicionais da missa Católica Apostólica Romana. A secularização de muitas partes é uma mensagem direta ao tempo do mundo e os textos sagrados fazem parte do tempo do templo. Na busca da síntese não encontramos mais nada senão medo e fuga. É possível que existam outras soluções, mas estas que se seguem nos parecem imediatas e inevitáveis. Conscientes de nossa profunda ignorância diante de Deus e do universo, nos confessamos errados e iníquos.
Nosso gesto e nossa atitude representam apenas uma corrida para longe de Deus, para podermos gritar o que não basta mais ser sussurrado e dito em voz meiga. Entre conhecer o homem e Deus, temos mais oportunidades de conhecer o homem e a humanidade. Esta missa leiga tenta representar esta ideia e este vínculo. Se a verdade começa dentro de mim pela centelha divina da vida, então este testemunho é verdadeiro. Se o homem é uma fraude, então é fraudulento. Diante do limite da morte geral da humanidade que se autodestrói, nossa oração tem seu sentido. Transportarmos o tempo do mundo para o tempo do templo é a ligação maravilhosa que tentamos. Espantar-nos diante da absurdidade da sociedade atual é a ligação perplexa que sofremos.
Recorrermos ao efêmero e ao eterno com a mesma simplicidade é a nossa forma de verdade.
São Paulo, 1972.
Chico de Assis
Este projeto foi realizado com o apoio do Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo – Secretaria Municipal de Cultura.
Ficha Técnica
Texto: Chico de Assis
Músicas: Cláudio Petraglia
Direção Geral: Márcio Boaro
Assistente de Direção: Eduardo Campos
Elenco:
Alessandra Siqueyra
Amanda Nascimento
André Capuano
Arô Ribeiro
Atton
Cecília Barros
Demian Pinto
Ernani Sanchez
Joaz Campos
Luiz Campos
Maíra Chasseraux
Manuel Boucinhas
Mônica Raphael
Rodrigo Ramos
Theófila Lima
Toni D’Agostinho
Direção Musical e músico-ator: Demian Pinto
Assistente de Direção Musical e músico: Daniel Baraúna
Músicos e atores: Alberto Eloy e Ernani Sanchez
Cenógrafo e Direção de Palco: Antonio Marciano
Concepção de Luz: Márcio Boaro
Operação de Luz: Luciana Silva
Figurino: Kleber Montanheiro
Preparação Corporal e Coreografia: Kátia Naiane
Fotógrafa: Fernanda Ayodelê Procópio
Assessoria de Imprensa: Adriana Monteiro
Designer Gráfico: Toni D’Agostinho
Direção de Produção: Mônica Raphael
Produção: Vanda Dantas
Missa Leiga
Teatro Arthur Azevedo
Av. Paes de Barros, 955 – Mooca
Tel: 11 2605-8007
Horário da Bilheteria: Apenas no dia da apresentação, abre com 1h de antecedência do espetáculo.
De 14 a 24 de abril e 05 a 08 de maio de 2022
Quintas, Sextas e Sábados às 21:00
Domingos às 19:00
Preços: R$ 20,00 (inteira) e R4 10,00 (meia-entrada)
Indicação: 14 anos
Duração: 80 minutos
Fotos: Fernanda Ayodelê Procópio
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