Em Feitiço de Soma, coletiva de teatro Rainha Kong apresenta uma trajetória da epidemia de HIV/Aids e reflete sobre a recepção da soropositividade no Brasil…
A dramaturgia da peça, escrita e publicada a partir da execução de um projeto contemplado no edital ProAC nº 20/2019, busca analisar as recepções da soropositividade em corpos brasileiros. O texto foi criado em processo com o dramaturgo Tiago Viudes, a antropóloga Pisci Bruja e a atriz e sonoplasta Nãovenhasemrosto
Estruturada como uma espécie de palestra em que eventos históricos relevantes vão se sobrepondo a experimentações musicais, Feitiço de Soma, peça inédita da coletiva Rainha Kong estreia no TUSP Maria Antonia dia 10 de janeiro de 2024, com temporada até 4 de fevereiro. O projeto também prevê a realização de um ciclo de três debates públicos com datas, locais e participantes a definir. As conversas tem parceria da Coletiva Loka de Efavirenz, bem como com outres pesquisadores e artistas que abordam o tema HIV/AIDS em seus trabalhos, com a mediação de Pisci Bruja – membra da Coletiva Loka de Efavirenz.
Desde o início da epidemia de HIV/AIDS no Brasil, na década de 1980, a estigmatização sobre os corpos que convivem com o vírus é impactada diretamente pela ideia de que apenas pessoas pertencentes às comunidades LGBTQIAP+ e/ou pessoas racializadas como não-brancas possam contrair o vírus – ideia midiaticamente estruturada naquela década, mas que encontra ecos até hoje. É daí que parte Feitiço de Soma, obra criada em 2020 por Aleph Antialeph. “A peça compreende a história particular de alguém que recebeu o diagnóstico da soropositividade, mas ainda é sujeito da história dentro desse fluxo que se iniciou antes e que se prolonga para muito depois”, conta Aleph.
Na peça, há uma subversão da ideia tradicional da palestra, fazendo com que uma fala por vezes verborrágica vá dando espaço a um feitiço que conclama todas as pessoas para a questão do HIV, muitas vezes colocada como um problema pessoal e carregada de estigmas, como a da sujeira e da depravação.
Sinopse
Duas performers se encontram num palco iluminado, recortado por um símbolo de “+”. Aleph Antialeph e Nãovenhasemrosto reúnem-se para uma palestra, na qual refletem sobre suas próprias trajetórias relacionadas ao HIV, retomando a história do vírus e da epidemia de AIDS – fatos históricos como a Operação Tarântula, deflagrada nos anos 80 no Brasil ou a suposta descoberta de G.D., comissário de bordo canadense intitulado como “Paciente Zero”, supostamente tendo trazido o vírus para a América do Norte. Um avião cai no espaço. A racionalidade da palestra é engolida pelo Feitiço de Soma. As duas palestrantes, agora agentes deste feitiço, performam magias para curar-se do vírus infectando todes.
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A livre associação do HIV/AIDS com pessoas dissidentes da norma (sexual, de gênero, classe e raça), em sua maioria bixas, pessoas trans e/ou racializadas como pretas, além de tentar construir um processo higienista que marca tais corpos enquanto “sujos”, corrobora também para um projeto de extermínio e criminalização deste recorte populacional.
A situação se torna ainda mais complexa quando se percebe que as várias manifestações midiáticas que tem como objetivo combater os estereótipos do HIV/Aids acabam por ocultar a sorologia destes corpos que – mesmo permitida por lei -, ainda revela o medo social desse compartilhamento, um processo de invisibilização fomentado por anos de violência que repercutem ainda hoje.
Não enquadrar o debate sobre HIV/AIDS enquanto um tópico de saúde pública, mas sim com a premissa de se tratar de uma doença que se difunde apenas dentro de uma população já marginalizada, reflete nas formas com que corpos soropositivos são assimilados socialmente.
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Na obra, o feitiço busca criar uma espécie de contaminação, como se numa dinâmica que faça o problema deixar de ser encarado de modo individual e seja visto como algo coletivo. “Existem indícios do feitiço desde o começo da peça, como uma carta de tarô gigante do Mago no centro do palco”, conta Aleph, reforçando que a obra vai aos poucos expondo elementos e signos que compõem a magia. Ao longo do trabalho, a DJ e produtora musical Nãovenhasemrosto, que está ao lado de Aleph no papel de uma interlocutora, traz elementos sonoros executados ao vivo na cena por Venus Garland (baterista) e Helena Menezes (baixista).
A sonoplastia da obra existe desde uma mix-tape preparada por Nãovenhasemrosto ainda em 2020 e que contaminou a forma com que Aleph estava escrevendo a dramaturgia da peça. “Essa mix-tape é uma provocação não-bibliográfica ou textual que até foi publicada junto com o livro”, diz Aleph.
A cena é composta ainda por danças executadas por Nata da Sociedade e oito TVs espalhadas no espaço que projetam gravações ao vivo, exibidas ao público em uma estética de VHS, além de sugerirem ações ao público por meio de uma função de teleprompter, já que a plateia é nomeada como a personagem Assistente durante a peça.
Sobre a coletiva Rainha Kong
A Rainha Kong é uma coletiva de teatro e performance fundada em 2016, em Campinas – dentro do curso de Artes Cênicas da Universidade Estadual de Campinas -, e que hoje está sediada na cidade de São Paulo.
O primeiro espetáculo da companhia, O Bebê de Tarlatana Rosa, estreou em 2016 no departamento de Artes Cênicas da Unicamp e se apresentou no FETO (Festival Estudantil de Teatro de Belo Horizonte – 2017), no Festival de Teatro Universitário da UFRN (2017), no Teatro de Contêiner em São Paulo (2017), na Mostra Todos os Gêneros, organizada pelo Itaú Cultural em São Paulo (2018), no SESC Pinheiros (2022), nos SESCs Piracicaba e Campinas através da Semana de Arte Transviada – projeto contemplado pelo ProAC -, e, em 2021, realizou, com apoio da 36 ª edição Lei de Fomento, temporada online nos teatros municipais paulistanos Arthur de Azevedo, Cacilda Becker, Alfredo Mesquita e João Caetano.
Em 2019, Aleph antialeph, integrante da Rainha Kong, foi contemplada com o edital ProAC nº 20/2019 para escrever e publicar a peça Feitiço de Soma, publicada pela editora Urutau.
Em 2020, a coletiva participou da série Cena Inquieta, veiculada pela SESC TV com direção de Toni Venturi e curadoria de Silvana Garcia. Neste mesmo ano, participou da mostra DRAMAQueer, organizada pelo CCSP, com a vídeo-performance Rute Varadão Conta Evir Mancebo.
Em 2021, como parte do projeto “As Histórias Vistas de Baixo”, contemplado pela 36 ª edição da Lei de Fomento, a Rainha Kong realizou três aulas públicas com Helena Vieira, Ferdinando Martins e Ave Terrena, todas disponíveis no YouTube no canal da Casa 1. Realizou também a oficina de performance “As Histórias Vistas de Baixo”, que contou com a participação de diversos atores e performers, provocações de Daniel Veiga, Pedrx Galiza e Lino Calixto e uma mostra na LGBTflix. Em 2022, também por meio da Lei de Fomento, a RAINHA KONG realizou temporada de 24 apresentações no TUSP e no Teatro João Caetano da peça “Sarah e Hagar decidem matar Abraão”, com direção de Diego Moschkovich.
Em 2023, a Coletiva foi contemplada pela 16ª Edição Prêmio Zé Renato para produção e temporada da peça de Aleph Antialeph, “Feitiço de Soma”. Essa será a primeira montagem a partir de um texto dramatúrgico escrito por uma das integrantes do grupo, dando não só continuidade, mas aprofundando a pesquisa da coletiva, que desde o ano de sua fundação, em 2016, se dedica à pesquisa de corpas dissidentes e seus desdobramentos, tanto temáticos quanto estéticos, quando friccionados com a cena.
Ficha Técnica
Atuação – Nãovenhasemrosto e Aleph Antialeph
Dramaturgia – Aleph Antialeph
Direção e Encenação – Vitinho Rodrigues e Jaoa de Mello
Preparação Corporal – Helena Agalenéa
Iluminação – Felipe Tchaça
Sonoplastia – Nãovenhasemrosto
Figurino – Nilo Mendes Cavalcanti
Cenografia – Victor Paula
Assistente de Cenografia – Rey Silva
Contrarregra – Nata da Sociedade
Baterista – Venus Garland
Baixista – Helena Menezes
Designer Gráfico [Identidade Visual] – Gunshy
Fotografia [Identidade Visual] – Afrop
Registro Fotográfico e Fílmico da Peça – Noah Mancini
Vídeo Streaming – Vinicius Feitoza
Mediação dos Debates Públicos – Pisci Bruja
Assessoria de Imprensa – Márcia Marques (Canal Aberto)
Produção – Corpo Rastreado – Gabs Ambròzia
Feitiço de Soma
TUSP Maria Antonia
Rua Maria Antônia, 294 – Vila Buarque, São Paulo)
Temporada: 10 de janeiro a 4 de fevereiro de 2024.
Quarta a sábado, 20h; domingo, 19h
Ingressos gratuitos
Classificação indicativa: 14 anos
Duração: 70 min
Foto: Pedro Jorge Afrop
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