Com dois romances vigorosos publicados no Brasil, finalmente a premiada escritora francesa Marie NDiaye terá seu teatro revelado ao público brasileiro. Hilda, primeira peça da autora, cuja obra teatral é totalmente inédita por aqui, estreia dia 27 de abril no Centro Cultural São Paulo…
A montagem do Núcleo Caixa Preta de Teatro, com tradução de Bibianne Riveros e direção de Roberto Audio, traz no elenco Cácia Goulart (três vezes indicada ao Prêmio Shell/SP de melhor atriz), Zé Geraldo Jr. e Beatrix Oliva.
Marie NDiaye, consagrada com os prêmios Femina, em 2001, e Goncourt, em 2009, é um dos nomes mais aclamados da literatura francesa contemporânea. Conhecida pelo trabalho primoroso com a palavra em seus romances, conduzindo uma narrativa em que o mais importante e aterrador se mostra nas lacunas do discurso das personagens, no teatro a sua escrita é igualmente vigorosa, problematizando a indigência da condição humana.
Hilda aborda o drama da vida privada e suas afetações burguesas no nível da mais franca histeria, fazendo surgir no palco um tagarelar incessante da mais pura neurose, através de Madame Lemarchand, interpretada por Cácia Goulart. Na trama, a mulher rica e ociosa, que delega aos outros a própria vida, decide por puro capricho que quer ter Hilda como empregada. Tanto ela quer e tanto ela pode, que sequer precisa consultar Hilda, bastando que o marido desta (Frank, interpretado por Zé Geraldo Jr.) “feche negócio” com a patroa, praticamente leiloando a esposa. Ter Hilda passa a ser a principal ocupação da madame, e a apropriação vai se fazendo cada vez mais intrusiva, até ela decidir que nem o marido nem os filhos de Hilda poderão vê-la mais; ela mesma, madame, dará banho em Hilda, vestirá Hilda, cortará os cabelos de Hilda, alugará Hilda aos amigos, emprestará Hilda ao marido… O vampirismo estarrecedor de Lemarchand não dá margem sequer para que a personagem da empregada apareça em cena; embora tendo o nome obsessivamente repetido ao longo da peça, tudo o que soubermos de Hilda será dito pelos outros.
“À primeira vista é uma relação de poder entre a empregada e a patroa, mas o que o texto revela é, na verdade, a impotência dessa mulher aparentemente tão poderosa. Ela não tem vida própria, e por isso precisa se apropriar da vida dos outros e destruí-las”, diz Cácia Goulart, que revela ter ficado chocada com a primeira leitura do texto. “Acho que essa incapacidade de ser dessa mulher acaba não permitindo que outros sejam também”.
De fato, na peça, o poder de Madame Lemarchand se efetiva em todas as suas dimensões, desde as mais mesquinhas e caprichosas. Em contrapartida, mais dependente ela se torna, incapaz de saber o que fazer de si mesma. Talvez por isso é que ela lamenta, melancólica: “Não podemos fazer nada do fato de Hilda ser ela mesma, Frank”. Como se, apesar de totalmente sujeitada a esse poder devastador da patroa, o mero fato de ser “o outro” é algo que ninguém pode nos tirar, mesmo que nos destrua. Por isso, no exercício infame desse poder, Madame Lemarchand estará condenada a uma falsificação do real, condenada a uma personalidade mimética – que procura fora de si o que a sua própria indigência subjetiva não pode lhe dar.
Mas é precisamente essa falsificação do real que se dá através do discurso de Lemarchand o que faz o espetáculo atingir momentos de um humor mordaz. A dissonância tagarela entre o que é dito e a precária representação que a madame tem de si mesma resulta na exposição de uma doença social que só o riso cortante é capaz de denunciar.
Encenação
Para encenar uma obra de tão tensos jogos verbais, em que a força da palavra é avassaladora da primeira à última linha do texto, o diretor Roberto Audio diz ter optado por colocar atores e demais artistas envolvidos no trabalho sob a responsabilidade de criarem um discurso por entre as lacunas do drama já escrito. “A direção foca sobretudo no jogo entre os intérpretes, para localizar e construir as múltiplas variações de estados, tempos e performances, com o intuito de localizar os embates essenciais entre as personagens”, conta Audio.
Com música original de Marcelo Pellegrini, Luz de Lúcia Chedieck e cenário e figurino de Rosângela Ribeiro, a montagem se vale de espaços cênicos definidos por linhas de luz e formas geométricas que flertam com o abstracionismo de Mondrian, revelando diferentes intensidades, como fragmentos de uma estrutura opressora superior.
As transformações no espaço serão feitas pela luz e pelos atores. “Por esse motivo”, explica o diretor, “o espaço deverá ser minimalista e móvel, sem obstruir o imaginário do espectador”. Pela mesma razão, objetos essenciais ao universo de cada uma das personagens compõem a cenografia. “O resto”, diz Audio, “é por conta da riqueza da palavra e do jogo interpretativo”.
Marie Ndiaye
Aclamada em 2009 com o Prêmio Goncourt pelo romance Três mulheres Fortes e o Prêmio Femina em 2001, com Rosie Carpe, mas seu romance mais conhecido no Brasil é Coração Apertado. NDiaye já se consolidou como um dos grandes nomes da literatura contemporânea francesa. Hoje, ela conta com uma dezena de romances e coletâneas de contos, peças de teatro, histórias infantis e a coautoria do roteiro de White Material, último filme de Claire Denis, estrelado por Isabelle Huppert.
Núcleo Caixa Preta – Histórico
A Morte de Ivan Ilitch, de Tolstói (2013) teve duas indicações ao Prêmio Shell de 2013 em SP: melhor atriz para Cácia Goulart e melhor iluminação para Lúcia Chedieck.
O Abajur Lilás ou uma Medeia Perdida na Augusta?, a partir das obras de Plínio Marcos e do mito de Medeia (2013).
Menina Nina, Duas Razões para não Chorar, de Ziraldo (2011), adaptado por Elzemann Neves, Vadim Nikitim e Daniela Thomas, a partir do livro homônimo de Ziraldo.
Dissidente, de Michel Vinaver (2010), obra do dramaturgo francês Michel Vinaver, sob direção de Miriam Rinaldi.
O Funâmbulo, de Jean Genet (2009), poema-ensaio de Jean Genet.
Bartleby, de Herman Melville, adaptação de José Sanchis Sinisterra (2008), teve duas Indicações ao Prêmio Shell 2008 em SP: melhor atriz para Cácia Goulart e melhor cenário para André Cortez.
Navalha Na Carne, de Plínio Marcos (2003), teve indicação ao Prêmio Shell 2003 em SP de melhor atriz para Cácia Goulart.
Quando As Máquinas Param, de Plínio Marcos (2001), com Cácia Goulart e Edmilson Cordeiro no elenco e dirigido por Joaquim Goulart.
Cegonha, Avião… Mentira, Não! de Yves Vedrenne (1999), adaptado e dirigido por Joaquim Goulart, a partir de texto do educador francês Yves Vedrenne.
Medeia é um Bom Rapaz, de Luis Riaza (1999), com texto do espanhol Luis Riaza, dirigida por Marco Antonio Braz.
Ficha Técnica
Dramaturga: Marie Ndiaye
Direção: Roberto Audio
Tradução: Bibianne Riveros
Atores: Cácia Goulart, Zé Geraldo Jr. e Beatrix Oliva
Iluminação: Lúcia Chedieck
Música Original: Marcelo Pellegrini
Cenário e Figurinos: Rosângela Ribeiro
Preparador de Atores: Alexandra da Matta
Fotografia: Cacá Bernardes
Vídeo: Bruna Lessa/Bruta Flor Filmes
Designer Gráfico: Osvaldo Piva
Idealização e Direção de Produção: Cácia Goulart
Produtor Executivo: Lucas Lassen
Realização: Núcleo Caixa Preta da Cooperativa Paulista de Teatro
Hilda
Centro Cultural São Paulo
Sala Jardel Filho
Rua Vergueiro, 1000 – Vergueiro
Tel.: 3397-4002
Capacidade: 321 lugares
Duração: 90 minutos
Recomendação: 16 anos
Temporada: 27 de abril a 10 de junho
De 27 de abril a 13 de maio e de 25 de maio a 27 de maio
Sextas e sábados, às 21h
Domingos, às 20h
31 de maio a 10 de junho
Quinta a sábado, às 21h (as sessões das quintas-feiras dias 31/5 e 7/06 são gratuitas; os ingressos serão distribuídos na bilheteria uma hora antes do início)
Domingos, às 20h
Ingressos:
R$ 30,00 (inteira)
R$ 15,00 (meia)
Venda Online: Ingresso Rápido
Foto: Cacá Bernardes
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