100% São Paulo, relato de coxia

Por Isaac Gonçalves

Com 105 anos de história, o Theatro Municipal de São Paulo é o palco mais simbólico da nossa cidade e foi nele que, entre os dias 5 a 7 de março de 2016, como parte da 3ª edição da Mostra Internacional de Teatro de SP, o espetáculo 100% São Paulo, do grupo suíço-alemão Rimini Protokoll (formado por Stefan Kaegi, Helgard Haug e Daniel Wetzel), colocou sob os holofotes 100 não-atores para representarem a diversidade desta que é uma das maiores cidades do mundo.

Com base nos dados do IBGE, os não-atores, a quem o grupo – e eu – se refere como “especialistas”, foram selecionados pela preparadora de elenco Cláudia Burbulhan, segundo critérios de idade, sexo, localidade, etc., agrupando o maior número possível de variáveis. Eu tive o prazer de fazer parte e senti a necessidade de dar uma visão “interna”, contando com a valiosa colaboração de outros especialistas.

O rosto das estatísticas…

A maior parte do espetáculo consistiu em perguntas formuladas a partir de um questionário biográfico respondido por todos os especialistas e da nossa realidade político-social. Resumindo, a pergunta aparecia no telão e nós nos posicionávamos em um dos lados do palco, concordando ou não.

As perguntas eram polêmicas – ou não. “Quem é a favor da pena de morte? Quem acha que o Brasil era melhor no tempo dos militares? Quem acha que pacientes terminais devem ter o direito de colocarem fim às suas vidas? Quem já pensou em suicídio? Quem é homossexual? Quem tem (teve) câncer?”, São apenas algumas das dezenas de perguntas que tivemos de responder.

Numa cidade extremamente heterogênea como a nossa, onde as estatísticas são facilmente manipuladas e abordam aspectos ínfimos da realidade em que vivemos, 100% São Paulo prende a atenção não pela criatividade ou inovação, mas por mostrar ao público, com a naturalidade da vida real, a cara do mundo que os rodeia e influencia, mas que é, muitas vezes, ignorado.

Especialistas do cotidiano

O sucesso do espetáculo dependia da divergência de opiniões. O diretor Stefan, durante os ensaios, repetiu inúmeras vezes que as perguntas/declarações deveriam ser as mais pessoais e polêmicas possíveis. Declarações como “eu sou feliz”, por exemplo, eram – e ainda bem, dispensadas. Mas o sucesso trazia como co-requisito a convivência. A tarefa de colocar 100 desconhecidos num mesmo lugar, incentivá-los a expor suas opiniões e ainda manter a harmonia entre todos pode ser difícil.

Lembro que, em um dos ensaios, um dos especialistas declarou que queria a investigação e prisão do Lula, ao que outra participante reagiu revoltada. Isso me fez perceber que vivemos em uma bomba-relógio. Apesar de estarmos lado a lado, somos radicalmente diferentes e muitas das vezes não sabemos como lidar com isso.

Mas o dilema da “reunião dos desconhecidos” estava longe de acabar. Tínhamos pessoas de todas as classes sociais, diferentes níveis de educação e interesses. E tínhamos que ser um grupo e fazer dar certo. Em alguns momentos, porém, a prática foi bem mais difícil, principalmente nos ensaios finais, pois, nas palavras da “especialista” e Radiologista Patrícia de Souza Domingos, “quanto mais tempo de convívio, mais difícil se torna lidar com essas diferenças”.

Já a “especialista” Patrícia Tolentino, focalizadora de danças circulares, ressalta que “a diferença de entendimento das propostas e a visão do todo entre os participantes foi bastante clara, assim como o ‘não cumprimento’ das regras estabelecidas no grupo no momento de individualidade e improviso no palco.”

No mesmo sentido, a Consultora Andrea Leoncini avaliou a montagem como “ousada e a direção dos criadores do espetáculo cuidadosa ao valorizar a participação de todos. No entanto, uma parte do grupo mostrou que somos frágeis enquanto amostra do povo brasileiro em honrar combinados. Na hora de realizar, de assumir a cena, o pouco compromisso de alguns deu lugar ao mau uso do espaço de expressão.”

De fato. Na estreia, por exemplo, eu e várias pessoas ficamos bastante incomodados com interferências desnecessárias e conversas avulsas partindo dos próprios integrantes do elenco. Como disse anteriormente, a enorme diferença entre os “especialistas”, que aqui se refletiu no grau de compromisso com o projeto, se era o eixo fundamental do espetáculo, também era sua possibilidade de fracasso. E isso foi incrível.

Incrível porque, enquanto habitantes de São Paulo, esta convivência, muitas vezes conflituosa, é a nossa realidade diária. Surge, então, a pergunta: como lidamos com isso? Em geral, pelo que vivo e vejo, reduzimos as possibilidades de conflito ao máximo criando e convivendo em grupos com afinidade de interesses. Aqui reside, na minha opinião, um dos questionamentos principais de 100% São Paulo: somos mesmo parte de um todo? O projeto inteiro foi um estágio que, se intencionalmente insuficiente para nos levar a conclusões, foi o bastante para nos questionarmos.

Ah, os diretores…

Stefan, sendo o único diretor que fala português, conduziu sozinho os ensaios, restando a Helgard e Daniel cuidarem da parte técnica. Mesmo fazendo jus à fama de que os alemães são pessoas reservadas e sem muitas demonstrações de afeto, ele foi o mais legal e simpático que conseguiu ser. Mesmo assim, o contraste com o “espírito festeiro brasileiro” foi evidente e rendeu momentos memoráveis.

O mais emblemático aconteceu em um dos ensaios. Na cena em que todos os especialistas, incluindo gringos e nascidos em outros Estados do país, se reconhecem como paulistas, a banda toca um trecho de “Trem das Onze”, clássico de Adoniran Barbosa e tema do espetáculo. O trecho tocado era curtíssimo. Eu, que neste momento estava sentado no chão, quase não consegui levantar a tempo de ensaiar alguns passos. Era tudo muito mecânico. Levanta, pula, grita, senta. 10 segundos. Próxima cena.

Foi então que, acabando a música, e sem nenhuma combinação prévia, todos continuamos a cantar, em uma só voz. Foi lindo, todos cantávamos sorridentes e os corredores do Municipal eram, finalmente, nossos. O Stefan, no entanto, ficou nitidamente incomodado e mandou-nos parar e seguir o roteiro à risca. Essas pequenas “broncas” da direção e a repetição das perguntas nos ensaios acabaram por tirar quase toda a nossa espontaneidade inicial.

Recordo-me, também, de algumas frases do Stefan que repercutiram entre os participantes: “agrupem-se mais, vocês são brasileiros, gostam de carinho” e “quando vim para cá, tinha certeza de que vocês seriam irresponsáveis com o projeto. Brasileiros… e sempre atrasados. Mas estava errado” são as mais lembradas.

 

Foi por frases assim que, na segunda-feira, 7 de março, durante o microfone aberto da última apresentação, fomos pegos de surpresa quando um dos participantes perguntou “quem acha que os diretores desta peça são preconceituosos e nos veem com estereótipos?”. Uau, nenhum de nós tinha feito nada semelhante nos ensaios ou apresentações anteriores. Eu, não tive tempo de pensar. Acabei ficando no “eu concordo” porque já estava lá.

Impressionou-me, no entanto, a quantidade de pessoas que ratificaram a percepção do nosso colega. Uma amiga que nos assistia mencionou que todos ficamos visivelmente eufóricos com a pergunta. Foi um momento bastante emblemático, e demonstrou que, mesmo arriscado em certas situações, o melhor do Brasileiro é a espontaneidade.

O Stefan percebeu isso a tempo. No ensaio seguinte, pediu que continuássemos cantando após o fim dos acordes. E, mais que isso, que voltássemos a ser nós mesmos.

Representando o irrepresentável

Enfim, estávamos lá para representar, com base nas estatísticas, toda a variedade da população de São Paulo. Nesses tempos em que se fala tanto de representatividade e ocupação, 100% São Paulo veio para entregar a cidade aos seus habitantes.

As perguntas do tipo “quem mentiu nesse palco?” ou “quem se sente representado por nós” – esta feita à plateia, trouxeram à tona o paradoxo da nossa tentativa de representação.

Se, por um lado, éramos 100 cidadãos paulistas, especialistas em nossos grupos sociais, por outro éramos e somos tão individuais que qualquer tentativa de estabelecer um denominador comum é falha.

A beleza do espetáculo está na descoberta de novos questionamentos e em enxergar a si e ao outro. Ao expormos nossas opiniões, éramos obrigados não apenas a refletir sobre elas, mas também a defendê-las, em um processo que culminava em um aprendizado mais pessoal que propriamente coletivo.

A exemplo disso, a especialista Rosana SantAna Mello, estudante de Relações Públicas, questionada sobre sua participação no projeto, afirmou que “não esperava a energia que os outros 99 participantes tinham. Foi um momento único, com pessoas maravilhosas, cada uma com seu talento, com sua história. Isso foi prazeroso e fazer parte desse momento mágico na vida delas fez com que eu me sentisse ‘solta’ e me inspirou a descobrir mais sobre elas”. A estudante, porém, diz que sentiu falta do seu próprio ‘eu’, pois não gosta de falar de si mesma, e confessa que “poderia ter sido mais verdadeira e real.”

Acho que isso resume bem o que representou o espetáculo. Quem somos nós na multidão? Eu, por exemplo, me questionei diversas vezes sobre o papel que exerço na minha própria vida e na sociedade na qual estou inserido.

Vivendo em grupos

A performance foi, em suma, uma necessária viagem para fora de nossa zona de conforto, e, apesar de termos embarcado juntos, seguimos todos caminhos diferentes, pois, como afirma o especialista e Engenheiro Elétrico Antônio João Valandro, “perceber as diferentes linhas de pensamento que compõem SP nos leva a vários posicionamentos. Se, por um lado, aceitamos as diferenças religiosas e políticas, por outro, exercemos a capacidade de não tolerar assuntos como homofobia, fascismo e admiração pelo regime militar. Relações de amor e ódio e admiração e desprezo se estabelecem a partir daqui. Viver em grupos não é fácil.”

E não é mesmo. Como se estabelecer diante de tantas variáveis? Patrícia Tolentino, no entanto, a partir de sua própria experiência de vida, recomenda “processos grupais para todas as pessoas, sejam quais forem, pois sempre traz ao indivíduo a possibilidade de ampliar o seu leque de experiências emocionais, intelectuais, de visão de mundo e de relacionamentos”.

A plateia se sentiu representada?

Sim. Não. Talvez. Depende. Depende da pergunta. O que estávamos, afinal, tentando representar? Para mim, o caos. O caos das diferenças, dos questionamentos, da convivência em sociedade, da descoberta de nossa própria nudez e fragilidade.

A advogada Nádia Migoto, que assistiu à última apresentação, achou “ótima a ideia de fazer, no palco, uma representação estatística da cidade de São Paulo com 100 não-atores, pois se materializou dados numéricos que costumamos ver apenas em gráficos” e finalizou, citando as diversas questões polêmicas, que “as posições tomadas por esse não atores, somada com as reações da plateia, que foi das vaias ao riso, demonstram que os temas abordados geraram uma reação em todos nós, que foi o que eu mais gostei, pois acho que ninguém, do palco ou da plateia, saiu do teatro sem se sentir incomodado com alguma coisa.”

Enquanto estivermos nos incomodando estaremos bem. E, se considerarmos que na questão “quem quer que as coisas permaneçam do jeito que estão?”, as luzes se fecharam sobre o vazio, estamos no caminho certo, mesmo que, conforme problematiza Andrea Leoncini, seja “desafiador pensar num mundo melhor para todos, pois o mundo melhor de cada um é muito particular.”

 

Fotos: Arlete Gimenez
Foto Stefan Kaegi : Séverine Chave
Fotos palco: Caio Nigro

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