No toba dos outros, é refresco

Não é fácil ter um lugar de destaque entre as dezenas de duplas sertanejas que vivem de interpretar música ruim em falsete. Zé Neto (José Toscano Martins Neto), da dupla Zé Neto & Cristiano, conseguiu chamar a atenção para todo o gênero e uma de suas particularidades – a contratação sem licitação com valores incompatíveis com a realidade orçamentária dos municípios.

Zé Neto atraiu os holofotes, porque quis atacar Anitta, mas o que fez foi revelar um esquema de corrupção que há décadas desvia dinheiro público. Muitos sertanejos de raiz (sim, eles existem!) ergueram patrimônios que não escapariam a auditorias sérias da Receita Federal.

“Estamos aqui em Sorriso, Mato Grosso, um dos estados que sustentou o Brasil durante a pandemia”, disse Neto, naturalmente se esquecendo que Mato Grosso produz principalmente grãos para alimentar o gado de outros países.

“Nós somos artistas que não dependemos de Lei Rouanet”, continuou. “Nosso cachê quem paga é o povo. A gente não precisa fazer tatuagem no toba para mostrar se a gente está bem ou mal. A gente simplesmente vem aqui e canta, e o Brasil inteiro canta com a gente.”

Nove os fora “o Brasil inteiro canta com a gente”, que, felizmente, é fake news, o cantor também não disse a verdade sobre Anitta – queira-se ou não, a artista brasileira viva mais famosa no exterior.

Quem o desmentiu foi a própria Anitta, numa reportagem do Fantástico. Ela esclareceu: 1) a localização da tatuagem não é exatamente onde o sertanejo apontou; 2) nunca precisou usar a principal lei de incentivo à cultura no Brasil, e 3) recusou várias vezes a cobrança de pedágio que os astros sertanejos aceitam sobre seus cachês milionários.

A repercussão foi fulminante. Prefeitos de municípios miseráveis passaram a ser questionados pelo Ministério Público. Só no Mato Grosso, estado campeão nessas contratações, R$ 16,6 milhões foram gastos neste ano com shows – a maioria com artistas do gênero que, em bloco, apoiam Jair Bolsonaro. Há casos de municípios em que cada habitante pagou R$ 209 reais por espetáculo. A Folha de 7 de junho, trouxe que a pista dada por Anitta gerou investigações em 24 casos de contratações sem licitação.

No mesmo Mato Grosso, o procurador -geral de Justiça, José Antônio Borges Pereira, justificou, em entrevista ao jornal, que as investigações foram abertas para “defesa do patrimônio público e da probidade administrativa”. E disse mais: “Precisamos ver se as prefeituras não estão prejudicando outras políticas públicas que são prioridade, como pessoas passando fome, falta de creches, creches sem merenda, postos de saúde não funcionando. Isso tudo é prioridade em relação a um show, que você pode fazer com cantores locais que cobram menos. Em Mato Grosso, temos 30 cidades com um índice de IDH mais alto, que são os grandes plantadores de soja. O restante é pobreza e desigualdade pesada. Às vezes a cidade não tem saneamento básico mínimo, mas tem show com cachê milionário”.

Para fugir do foco, dezenas de shows com astros sertanejos foram cancelados em vários Estados, justamente na alta temporada das festas juninas. Até mesmo a Câmara dos Deputados se mexeu, aprovando requerimento do deputado Alexandre Padilha (PT-SP), para a criação da CPI do Sertanejo. A primeira reunião da Comissão Parlamentar de Inquérito foi marcada apenas para julho e o escândalo tende a ser esquecido por causa da campanha eleitoral.

Quer dizer, logo logo teremos de volta a miséria real custeando a miséria musical.

 

Alceu Nader
Jornalista
Curadoria de Imprensa
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alceu.nader@gmail.com

 

Foto: Corália Elias

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